Nasci mulher. Não escolhi, apenas nasci. Durante certo período da infância e adolescência não gostava de ter nascido menina. O som da frase menina não pode fazer isso ou aquilo fez brotar em mim certa revolta silenciosa. Queria subir nas árvores diziam não. Queria ver os meninos jogando bola a negativa se repetia. Mas o que me chateou mesmo foi nunca ter ido fachear (caçar passarinhos) por ser menina. Admito que não queria matar os passarinhos só desejava sair junto com o grupo que se aventurava nas noites de lua cheia.
Consciente até demais da diferença com os meninos sentia certa raiva deles e comumente os observava pensando: posso fazer qualquer coisa melhor do que eles fazem.
Com o tempo fui quebrando algumas “regras”. Subia na árvore mais alta, pés de manga em especial. Caí. Quase morri, mas aprendi a subir em árvores. Mostrei que menina não precisa ter medo do escuro. E quebrei a regra mais importante no universo da vida no campo quando recusei heroicamente, após certa pressão, pedido de casamento aos 17 anos.
Cresci me condicionando a conseguir fazer coisas que os meninos e homens faziam. Aprendi um montão delas e, mesmo se saber disso, foi minha mãe quem mostrou todo o tempo que era possível. Meus pais se separaram meses após meu nascimento. Eu cresci na roça e vi mamãe trabalhando tanto ou mais que um homem.
Ela me criou sozinha com a ajuda dos meus avôs, mas sentia medo porque eu era menina, e pelo modelo predominante teria que ser submissa falando pouco, trabalhando muito, e apenas esperando para casar e criar os filhos mantendo a tradição de reforçar as diferenças de gênero deles.
Fugi do sítio assim que pude, mas voltava lá sempre. Fui morar na cidade. Fiz faculdade. Descobri que eu fazia parte dos 2% de mulheres negras que cursavam universidade federal. Senti orgulho. Aprendi a dirigir e lembro que fui ao sítio movida por um sentimento quase heróico. Meu avô me olhou com orgulho diverso do que se olhava para as meninas e percebi que já não fazia diferença os ensinamentos sobre coisas de menina e de menino.
Já adulta vejo que as diferenças apresentadas a mim na infância são ainda maiores e mais gritantes na tal “sociedade moderna”. A luta das mulheres pela igualdade não pode arrefecer sob pena de vermos nossas conquistas históricas, obtidas com dor, suor, lágrimas e todo tipo de sacrifícios sofrerem dano. Sei que em todos os lugares há meninas e mulheres silenciosas tentando exercitar direitos simples como falar ou fazer coisas normais. Talvez, se elas tivessem voz teríamos um mundo melhor.
Somente quando segurei nos braços pela primeira vez a minha filha parei de “competir” com meninos e homens. Naquele instante descobri que um homem jamais poderá sentir toda a felicidade que transborda na geração e nascimento de uma criança. Finalmente descobri que Deus reservou às mulheres uma dádiva única, que nem o mais estudioso dos homens poderá compreender. Posso dizer sem medo: não é fardo, muito menos castigo ser mulher.
Tenho um casal de filhos e procuro educá-los igualmente. Nunca disse à minha filha sobre as tais coisas de menina ou de menino. Eu a vejo crescendo forte, segura, decidida, mantendo a sensibilidade e coerência características da mulher. Por vezes, preciso interferir para “proteger” meu filho da força e determinação dela.
Quando penso no tamanho da mudança que a sociedade terá ao receber mulheres que crescem sem ouvir dizer que não podem fazer as coisas porque são meninas, um universo de possibilidades se desenha. Posso vislumbrar um futuro melhor, mais justo também, onde ser homem ou ser mulher será apenas questão de gênero, não sinônimo de opressão.
Por SANDRA PEREIRA: jornalista, casada e mãe de dois filhos