Por Wladimir Raeder*
A encenação da Paixão de Cristo de Taboão da Serra, por muitas décadas a maior ao ar livre do Brasil, começou em meados da década de 1950. Nesta sexta, dia 14 de abril de 2017, durante a 61ª edição, Mario Pazini, fundador do Espaço Clariô de Teatro será homenageado. Ele morreu em 2014 e essa é uma ótima oportunidade de refletir sobre o seu legado para a cultura de Taboão da Serra.
A história da encenação começou com Mário Pazini, o pai do homenageado, que junto com o dramaturgo Manoel da Nova, protagonizou a realização de show apoteótico num aclive abrupto na cidade que recebeu a alcunha de Morro do Cristo posteriormente.
Manoel da Nova trouxe a experiência como ator da TV Cultura para a partir de uma tradição religiosa organizar peças teatrais complexas e operísticas com Pazini na produção e às vezes ator no grande marco. O que era a procissão tradicional no entorno da velha igreja Santa Terezinha se tornou um grande espetáculo a partir de 1957. Taboão da Serra ainda era distrito de Itapecerica da Serra até se emancipar em 1959.
O espetáculo foi crescendo com os anos a ponto de atores famosos, como Norton Nascimento, atuarem na encenação. A Paixão de Cristo acabou sendo um celeiro de talentos e contribuiu no desenvolvimento do perfil de cidade vocacionada para as artes cênicas.
Nenhuma cidade das oito que compõem o Conisud possui tantos coletivos e grupos teatrais como Taboão da Serra. Trupes como o Clariô, Encena, Tesol, Lona Preta dentre tantos outros, são a parte mais visível de um enorme manancial. Isso sem contar a interconexão do teatro com os concorridos saraus e o futebol de várzea.
É comum ver os famosos I Love Laje e o Sarau do Binho em projetos parceiros com as trupes teatrais assim como o Futbolando e o Narra Várzea com o futebol dos rincões periféricos das comunidades. Isso sem falar do grande mestre Magela, do Candearte, e a sua permeabilidade interconectiva e transversal com todas as linguagens artísticas com o folclore e danças populares brasileiras.
Por último há de se falar de experiências estéticas gestadas nesse calderão como o exemplo do Sarau Alternativo que traz a influência do movimento Hip Hop, igualmente forte em Taboão haja vista recentemente o sucesso das ‘rinhas de MCs’ da Batalha TSP na pista de skate do Parque Pinheiros.
Enfim, Mário Pazini, o filho, chamado pelos amigos de Marinho, não só seguiu os passos do pai como foi desbravador visionário de outros tempos e desafios. Junto com o dramaturgo Will Damas, Marinho idealizou o projeto Clariô, o qual recebeu vários prêmios e reconhecimento nacional.
É o mais importante projeto de cultura da cidade e no qual foi possível se testar um dos primeiros coletivos de artistas independentes de Taboão, não sistematizado em cooperativas ou estruturas hierarquizadas de organizações sociais.
Marinho Pazini foi um pensador da cultura muito antes de ser articulador de projetos inovadores e sempre de forma coletiva com sofisticados processos democráticos para tudo entrar no debate. Todas as ações tinham a orientação de fomentar a cultura como política de estado e direito social de acesso universal ao escasso patrimônio cultural produzido no país.
Temperamento discreto e fala articulada, se esvaziava de seu ego para catalisar o zeitgeist e fazer plataforma para outros projetos culturais de Taboão de que falamos e que andam com as próprias pernas à revelia de apoio dos poderes institucionais constituídos.
No final das contas, mais do que um projeto de coletivo teatral, Pazini construiu um espaço cultural em que hoje afluem esses vários coletivos de resistência com repertório do mais antenado da cultura brasileira no campo de combate para ampliação também dos direitos sociais e humanos.
Não sei dizer se esse foi o projeto inicial do Marinho Pazini, mas está aí um de seus mais positivos desdobramentos. Inicialmente no Clariô talentos invisíveis da periferia se desenvolveram como artistas e colocando temas ainda embrionários no início da década de 2000 como os que estão estabelecidos no debate da luta das mulheres e das políticas afirmativas de negros, indígenas e direitos LGBTs.
Com enorme prestígio e respeito, Pazini nunca se prestou a interesses imediatos de usar dessa influência para objetivos políticos facciosos, pois sabia que a sua linha de atuação era a batalha de base coletiva, democrática e com a meta de buscar a economia criativa na rica reserva subjetiva do nosso povo.
Seu último ato foi a luta, já doente, pela lei de fomento à cultura na cidade de Taboão da Serra. Durante 2013, o Espaço Clariô foi palco de debates para a formulação das propostas da cultura sob o vértice de política de Estado que se contrapusesse ao modelo viciado de conluios pontuais prontamente descontinuados aos sabores dos ventos políticos.
No mesmo ano, Pazini ganhou o prêmio Governador do Estado na categoria Inclusão Cultural pelos projetos “Sarau do Binho”, “Quintasoito” e “Mostra de Teatro do Gueto”. Prematuramente, aos 51 anos, morreu Mário Pazini, o Marinho, em 2014.
* fotógrafo e produtor de conteúdo