O terremoto e a reconexão com o mundo pós-pandemia

por Ionice Lourenço e Edilson Menezes

Por mais eficiente que seja o estudo meteorológico mundo afora, não raro a fúria de um evento catastrófico se mostra acima das previsões. Quando chega ao fim, um terremoto de grande magnitude, por exemplo, deixa poeira, escombros, vítimas e uma pergunta no ar.

Por que não fomos capazes de prever a fúria?

Tal qual o indomável terremoto que desafia as leis da geofísica, eventos catastróficos no setor de saúde deixam a vigilância sanitária mundial com a mesma indagação, que parece ecoar.

Por que? Por que? Por que?

Seguindo o curso análogo das adversidades terremoto versus pandemia, precisamos considerar outro fator. O terremoto prevê evacuação parcial ou em massa, além da construção de abrigos onde as pessoas possam estocar alimento e esperar a bonança prometida no ditado popular.

Na contramão, endemias, epidemias e pandemias não avisam quando estão chegando, nem anunciam a força que carregam. Aliás, é um bom momento para explicar a diferença, já que muitos desconhecem. A endemia é a enfermidade contida, restrita e controlada, freada no mesmo local de origem. A epidemia é o aumento significativo da doença, o surto epidêmico que tem potencial para avançar e alcançar outros lugares. A pandemia é, digamos assim, o cicerone da epidemia, o descontrole, o sinal de que a palavra “controlável” saiu de cena, perdeu-se qualquer medição, alcançando o nível pandêmico (não coincidentemente, a expressão pandemônio é usada para expressar o caos).

Assim o mundo se descobriu, em meio a um terremoto, refém de um inimigo poderoso e invisível, que pode estar no botão do elevador ou nas mãos de quem amamos.

Um inimigo capaz de derrubar a imunidade, quedar principalmente o corpo daqueles que viveram muitas primaveras, mas forte o suficiente para fazer estragos também entre os que estão destinados a administrar o mundo depois de nós, os jovens.

Sem um abrigo digno de ser considerado 100% seguro para dar a sensação de salvaguarda, nenhum lugar parecia blindado. Do velho ao novo mundo, das nações mais abastadas às periféricas, o pandemônio do dia a dia fez jus a palavra escolhida pela medicina para resumir tudo, a pandemia.

Subitamente, estávamos acuados diante da opinião de autoridades que divergiam. Alguns defendiam isolamento vertical e outros, mais protecionistas, isolamento total e irrestrito. Até mesmo nos países que lideram a corrida pelo pódio da abundância, a economia sangrou, os hospitais se mostraram insuficientes, os médicos adoeceram e o número de mortes ficou difícil de ser contabilizado.

Sem escolher classe social, a pandemia levou pobres e ricos a rever seus valores, convidando as autoridades que não encontravam consenso de ideias e ações a pensarem em uma coisa que deveria ser óbvia até para um bebê: o importante é a vida. E, fosse a criança superdotada, ainda diria uma frase que muitos esqueceram, embora mais os velhos e experientes a repitam há tempos: enquanto há vida, há esperança.

É sobre tal ditado, tão antigo quanto os gestos simples de enxergar e caminhar, que devemos pairar os ideais: valorizar a vida, o resto vem depois.

Às vezes, tenhamos vontade ou não, paciência e disposição ou não, precisamos parar. Simples assim. Não importa o quanto a pessoa julgue saber, a doença tem o poder de dizer: você vai parar e ponto final.

Se tentássemos convencer um executivo de perfil workaholic sobre a necessidade de dar aquela desacelerada para curtir a vida e a família, ele responderia como a maior parte deles costuma argumentar.

“É por eles que me esforço tanto”.

A doença não permite argumentação, tampouco parece disposta a verificar o tamanho do esforço de João ou José.

–Vai parar e pronto! -parece ordenar, com clareza, a enfermidade.

Todos sabem quão difícil é vislumbrar qualquer ponto positivo ou lição agregadora em meio a um surto que ceifa tantas vidas. Porém não se pode negar que tivemos uma oportunidade de olhar para dentro de nós, estender as mãos (digitais, é claro) a quem precisa de apoio, reaprender ou avaliar os valores alimentados ao longo de uma vida inteira, rever o contato e o “modus operandi” escolhido para ter contato com aqueles que amamos, sob o amparo da premissa “é melhor ver a pessoa por aplicativo do que não ver”.

A única saída para o Brasil foi parar, evitando o risco de reproduzir a taxa de mortalidade contabilizada aos milhares, em diversos países. Ora, não há de se falar que as nações desenvolvidas como Itália, França, Espanha e Estados Unidos tivessem um sistema de saúde deficitário ou incapaz de lidar com a crise. Ao contrário, são países que ajudaram a construir todo o protocolo médico hoje seguido pelo mundo inteiro.

A questão é que, por mais preparados pessoal e tecnicamente, não existe nação que consiga encaixar em sua previsibilidade um surto de tamanho poder.

Em suma, o mundo inteiro ficou refém de um inimigo oculto, perigoso e letal. Foi necessário parar, arrumar a bagunça que está dentro ou fora de nós, isto é, as emoções e o habitat, a casa, o trabalho, a vida e o ambiente como um todo.

É um tempo que permite reaprender e alinhar o contato com os filhos, e revisar as circunstâncias que foram incumbidas pela vida, mas internalizadas por decisão nossa. Por exemplo: muitos de nós tivemos que trabalhar mais cedo do que gostaríamos, casamos ou tivemos filhos mais cedo do que imaginávamos.

Tudo isso, de repente, se encaixou. Agora, concluímos que nada acontece “cedo ou tarde” demais e cada evento em nossa vida tem o poder de gerar algum aprendizado.

Além disto, já que a humanidade foi obrigada a parar, por que não transformar o tempo de dor em tempo de reflexão, organização, amor, união, fé e oração?

Por que não investir na melhoria contínua da relação com os filhos, pais, irmãos, amigos, parceiros de negócios? Para tal, o fator-presença faz a diferença, mas não é determinante. Neste sentido, temos a vantagem conectiva de chats, lives e telefonemas, recursos que a pandemia da peste negra, a maior da história, não possibilitou àquele triste período entre 1347 e 1351.

Significa, portanto, que estamos vivendo uma pandemia privilegiada? Não, é claro que não. No entanto, devemos admitir que temos mais experiência e melhores recursos para vencer a doença do que tiveram os nossos irmãos daqueles tempos restritos.

Sairemos mais fortes depois dessa difícil jornada que prevê a perda de muitas vidas,mas precisamos ter em mente que tamanha dor não pode terminar sem deixar um valoroso aprendizado, pois é crucial aprender com as adversidades, o que nos leva a construir três perguntas.

  1. Quem sabe, teremos no mundo inteiro um movimento maior e mais dedicado ao avanço do casamento entre medicina e tecnologia, talvez com um orçamento tão vultoso quanto o que é destinado a pesquisa espacial?
  2. Quem sabe, a humanidade será capaz de rever conceitos e, em vez de pagar um salário bilionário aos pilotos de corrida, jogadores de futebol e basquete, se dedicará a remunerar melhor o pesquisador que passa dias e noites no laboratório, tentando prever e frear o movimento de enfermidades tão letais?
  3. Quem sabe, enfim, veremos as pessoas mais dedicadas ao que é fraterno, partindo do princípio de que é legal ter coisas, lutar por conquistas materiais, mas sem abrir mão da certeza de que respeitar o próximo é um requisito democrático exigido para o bem-estar de todos?

A primeira resposta pode mudar o curso do futuro. A segunda, é capaz de gerar a tão necessária equidade entre profissões, da qual o mundo carece desde que o século XV, época em que nascia o capitalismo para sepultar de vez o sistema feudal. Por último, sobre a terceira resposta, quiçá possa amenizar essa polaridade de convicções, fazer a pessoa pensar que o seu semelhante não é o cara da esquerda ou da direita, e sim um ser humano, cheio de erros e acertos, justamente o que torna a raça humana tão especial.

Assim como o sol, que vemos reluzir quase todos os dias, a luz da saúde há de brilhar dentro de nós. Afinal, depois da tempestade sempre vem a bonança e não será diferente desta vez, em que nos reconectaremos ao mundo que ajudamos a manter, com todas as doenças e os enfrentamentos, até hoje.

E, oremos, que assim continue. O mundo nunca precisou tanto de nós quanto neste momento. Fomos capazes de inventar aviões, trens, navios e agora, precisamos de uma reinvenção bastante simples: aprender ou reaprender a orar, conviver, amar, trabalhar, respeitar, vencer e continuar.

Lembre-se: cada pessoa pode fazer a sua parte. Acabamos de fazer a nossa, que se despede com um convite a refletir: sentiu que precisa de terapia em um momento tão difícil? Procure alguém. Não tente carregar o mundo nas costas e permita-se dividir tamanho peso com os psicólogos, sempre prontos à ajuda.

“Quem opta por se conhecer, decide da melhor maneira viver” – Ionice Lourenço

“A escolha, como sempre, é apenas sua” – Edilson Menezes

Ionice Lourenço é Palestrante, Psicóloga, Neuropsicóloga, Terapeuta Cognitivo Comportamental e Idealizadora do Espaço Terapêutico Viva Bem em Taboão da Serra.

Edilson Menezes é consultor literário. Idealizador da premiada metodologia intitulada revisão artística, é responsável por lançar, manter e fortalecer a carreira de vários autores.

*O artigo não reflete, obrigatoriamente, a opinião do Taboão em Foco.

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